Rede More: inovação em habitação sustentável
As mudanças climáticas representam uma das principais ameaças ao ambiente urbano atual. O aumento das temperaturas e os eventos extremos — como secas, enchentes, deslizamentos, apagões de energia e vendavais — afetam toda a sociedade. No entanto, seus impactos são sentidos de maneira mais intensa nas comunidades onde a construção autogerida é a principal alternativa para suprir a demanda por moradia.
Embora representem um volume expressivo das edificações no Brasil, com parte significativa localizada em favelas, essas obras realizadas sem a participação de construtoras ou agentes públicos são pouco estudadas sob a ótica ambiental. Para preencher essa lacuna e investigar essa fronteira esquecida nasceu a Rede More, uma iniciativa inédita que mergulha na realidade dessas habitações para encontrar soluções baseadas em ciência.
O projeto é pioneiro ao mensurar uma variável crucial e até então invisível nesse contexto: o “carbono incorporado”. O conceito refere-se a todas as emissões de gases de efeito estufa (GEE) geradas ao longo do ciclo de vida dos materiais — da extração da matéria-prima e fabricação ao transporte, instalação e descarte. Pela primeira vez, propõe-se calcular essa pegada oculta, revelando o impacto ambiental da forma como grande parte do Brasil constrói e buscando compreender uma cadeia produtiva que opera à margem dos sistemas tradicionais de planejamento.
Para muitos moradores, a casa, que deveria ser um abrigo, acaba se transformando em uma armadilha climática. Durante a primeira fase da pesquisa na comunidade São Remo, em São Paulo, relatos e dados relevaram um quadro preocupante. Os moradores descreveram uma sensação térmica excessiva, especialmente à noite, que prejudica o sono, somada à ventilação insuficiente, falta de iluminação natural e presença constante de umidade e mofo. Sensores instalados nas residências confirmaram essas percepções, registrando altas concentrações de dióxido de carbono (CO₂), o que configura um ambiente interno insalubre e aumenta o risco de doenças respiratórias. Evidencia-se que, embora a autoconstrução resulte do esforço legítimo dos moradores para melhorar sua qualidade de vida, as moradias acabam restritas por limitações de execução, escassez de espaço e uso de materiais de baixa eficiência.
Para decifrar a complexidade da autoconstrução, o projeto More combinou métodos de pesquisa inovadores, contrastando a natureza das moradias com a sofisticação das ferramentas de análise. Os pesquisadores adotaram uma abordagem integrada, que uniu entrevistas aprofundadas ao uso de tecnologia LiDAR — sistema de sensoriamento remoto a laser — para medir distâncias e formas com alta precisão. Esse mapeamento foi essencial para entender como a densidade e o layout dos edifícios contribuem para a falta de luz e ar. A metodologia une tecnologia de ponta, participação comunitária e ciência aplicada, gerando dados precisos sobre uma realidade até então compreendida apenas superficialmente.
A força da Rede More reside em uma aliança que redefine o papel da indústria, unindo o setor de cimento, a academia e o governo. A iniciativa é coordenada pelo hubIC (Hub Brasileiro de Inovação da Construção), uma parceria entre a Universidade de São Paulo (USP), a Associação Brasileira de Cimento Portland (ABCP) e o Sindicato Nacional da Indústria do Cimento (SNIC), com financiamento da Caixa. O projeto conta com a participação de 31 pesquisadores e profissionais, envolvendo universidades, organizações de pesquisa e extensão, e pretende integrar na próxima fase grandes empresas do setor produtivo. Juntos, esses atores buscam desenvolver soluções de baixo carbono viáveis para o mercado da autoconstrução, demonstrando que os desafios complexos das cidades exigem cooperação ampla.
Finalizada a etapa exploratória, os próximos passos da iniciativa incluem o aprimoramento dos métodos de mapeamento, visando escalá-los para moradias de construção autogerida em todo o Brasil. O planejamento abrange também o desenvolvimento de um banco de dados para estimar o estoque de carbono atrelado ao consumo de materiais e a realização de simulações computacionais para prever cenários futuros do impacto das mudanças climáticas no bem-estar da população. O objetivo final é elaborar recomendações técnicas sólidas e apoiar políticas públicas capazes de melhorar efetivamente as condições habitacionais.



